Por que o horror?

Clara Dantas
8 min readMar 13, 2024

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Sim, este é mais um daqueles textos de autoanálise, em que escrevo, reflito e busco entender a mim mesma.

Acredito que minha afinidade com relação ao gênero de horror (principalmente no contexto cinematográfico) pode ser justificada, até certo ponto, por uma completa mistura entre diferentes experiências pessoais.

A seguir, tentarei esmiuçar essa jornada, seguindo uma linha cronológica. Vamos lá?

I. Sobrenatural

Com apenas 3 anos de idade, fui levada a um mosteiro de freiras, as irmãs Clarissas, para que elas me benzessem. Por quê? Eu via pessoas mutiladas por toda a casa, no melhor estilo O Sexto Sentido (1999) — inclusive este é um filme que me deixa emocionada, justamente porque eu sei como o personagem Cole se sentia.

Ainda bem pequena, costumava me esconder embaixo da cama ou no espaço entre o guarda-roupa e a parede, tapando os olhos para não ver tais atrocidades. Eu as desenhava sempre com muito vermelho, para representar o excesso de sangue.

Minha mãe estava assustada com a situação e queria me proteger. Então, no mosteiro, me entregaram um terço ungido com água benta. Por bastante tempo, dormi com ele pendurado na cabeceira. Apesar da boa intenção, não funcionou. Hoje, levando em conta todo o meu histórico (pois vivi inúmeras situações supostamente sobrenaturais), me questiono: “Era mediunidade mesmo ou uma psicose não tratada?”

II. Criatividade

No 1º ano do Ensino Fundamental, eu estava estudando os meios de comunicação quando recebi o seguinte dever de casa: criar uma peça publicitária que incentivasse o uso de uma determinada pasta de dente. Praticamente um test drive para minha futura ocupação no marketing.

Aos 5/6 anos, tive uma ideia divertida para cumprir com a proposta e ainda manter o meu estilo, identificado desde muito cedo. Desenhei um vampiro com as presas em evidência, sujas de sangue, segurando uma escova e uma pasta. O texto dizia:

“Para mordidas mais fortes, use (nome da marca do produto)”

Sem dúvidas, uma abordagem ousada, criativa e um tanto macabra. Uma combinação que me acompanhou pelas primaveras seguintes e provavelmente seguirá até o fim da vida.

Além disso, aos 8 anos escrevi meu primeiro conto, intitulado “A mão viva”. Era sobre uma feiticeira que, à beira da morte, decepou a própria mão para que esta protegesse sua filha, eventualmente conjurando magias e cometendo assassinatos. Uma nítida influência da Mãozinha (Família Addams).

III. Festas locais

Nasci e me criei em Caicó, no estado do Rio Grande do Norte. Assim como em outras cidades interioranas fortemente influenciadas pelo cristianismo, todos os anos acontece uma festa em homenagem à padroeira (neste caso, Sant’Ana, a avó de Jesus). Durante os 10 dias de comemoração, as famílias levam suas crianças aos parques de diversão.

Nesse contexto, dois desses parques sempre me chamavam a atenção. Em primeiro lugar, o trem fantasma chamado Thriller, que honestamente era mais assustador por fora do que por dentro — principalmente se levarmos em conta a mão gigante que segurava e balançava um ser completamente amarrado.

Em segundo lugar, o icônico Monga, que apresentava “o poder da metamorfose” através da transformação de uma jovem mulher em um gorila selvagem. Eu era tão aficionada que além de ver a apresentação diversas vezes em uma única noite, decorei sozinha a narração que tocava em loop e, não satisfeita, passei a imitá-la na escola para assustar os coleguinhas, usando um microfone de brinquedo como aparato técnico.

Era realmente eficaz. Os meninos saíam aos gritos enquanto eu sacudia a cortina da área de serviço (fazendo de conta que o monstro estava atrás dela) e reproduzia a fala tenebrosa. Até hoje me lembro de alguns trechos:

À meia-noite buscarei a tua alma…
Seu olhar começa a ficar esbugalhado
Seus braços se enchem de pelos horríveis
(…)
A maldição de Zé do Caixão se apodera de Monga
para se transformar nesse verdadeiro monstro.
Cuidado! Aí está Monga completamente transformada.

Em Caicó, o sagrado e o profano andam lado a lado. Também não dá pra falar de lá sem mencionar o Carnaval. Nesse período, a cidade se converte em um verdadeiro polo de efervescência cultural, marcado por festas de diferentes tipos, criadas para agradar a gregos e troianos. A meu ver, as figuras mais marcantes desse cenário propositadamente caótico sempre foram os “papangus”, isto é, pessoas que vão às ruas mascaradas e fantasiadas, vestidas de preto dos pés à cabeça.

Assim como outras crianças que se inspiravam por eles, eu tinha o hábito de escolher a minha própria máscara, à venda nas barracas de camelô do popular Calçadão. Já adulta, descobri que a grande maioria daqueles rostos horrendos era criação da Spook, uma empresa especializada em máscaras assustadoras.

Eu possuía uma máscara idêntica a esta.

Todos esses exemplos vindos da minha infância mostram claramente que o lado mórbido das coisas sempre me atraiu.

IV. Cinema

Acho importante pontuar que mamãe era muito rígida com relação a classificações indicativas. Coberta de razão, ela não me deixava consumir nada que não fosse recomendado para crianças. Só que, querendo ou não, através da porta fechada do meu quarto, eu ouvia os gritos nos filmes que ela alugava e assistia na sala. A partir deles, minha imaginação fértil tecia cenas provavelmente piores do que aquelas transmitidas pelo videocassete.

Um amigo dela, certa vez, me perguntou qual era o meu tipo favorito de filme e eu respondi, sem hesitar: de terror. “Mas você não tem idade para ver”, ele interpelou. Eu só dei de ombros e disse que gostava mesmo assim. Talvez, inconscientemente, o sangue e a angústia já estivessem entranhados em mim, tendo em vista os horrores que presenciei desde nova.

No início dos anos 2000, O Chamado (2002) era uma verdadeira febre. O Ocidente definitivamente estava impactado pelo horror japonês. Lembro bem de um primo mais velho que sofreu o seguinte trote: alguém ligou para ele e sussurrou “7 dias”, imitando a voz de Samara Morgan. O coitado ficou aterrorizado.

Eu ri bastante dessa história e insisti que queria assistir esse tal filme que todo mundo comentava. Venci minha mãe pelo cansaço, esta única vez. Aos 8 anos, vi o longa e, como já era de se esperar, fiquei traumatizada. Passei uma semana sem dormir direito, “vendo” Samara em cada sombra da casa.

Aos 11 anos, assisti o não tão conhecido Demônios (2006), originalmente chamado 5ive girls, com meus colegas de sala. Esse filme tratava de questões como possessão, blasfêmia e forças ocultas de maneira apelativa, ao mesmo tempo em que fetichizava os corpos das garotas presentes na narrativa — algo lamentavelmente comum no gênero. Devido a essa abordagem ambígua, não é exagero dizer que ali aconteceu o meu gay awakening. O mais engraçado é saber que essa experiência se passou justamente em um colégio católico — sem que o corpo docente soubesse, é claro.

Depois, aos 12, vi A Vila (2004), filme indicado para maiores de 14 anos. Eu estava em casa, com bastante medo no início, mas minha mãe disse que valeria a pena — e realmente valeu. Naquela época, o grande plot twist explodiu minha cabeça.

Um ponto interessante sobre mamãe é que ela nunca escondeu o seu fascínio por vilões — característica herdada por mim. Ela acompanha, de forma muito entusiasmada, toda e qualquer mídia (livros, filmes, série) que envolva Hannibal Lecter. Sua influência em minha vida como cinéfila foi tanta que, não à toa, tatuei o pôster de O Silêncio dos Inocentes (1991) no meu braço esquerdo.

Já com 18 anos, durante a faculdade, morando em outra cidade, decidi explorar outros filmes, até então “proibidos” para mim. Comecei com clássicos como Psicose (1960), O Bebê de Rosemary (1968), O Exorcista (1973), O Massacre da Serra Elétrica (1974), O Iluminado (1980), Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio (1981)… Até aí tudo bem.

Com o tempo, confesso que acabei exagerando. Obras como Holocausto Canibal (1980), A Centopeia Humana (2009), A Serbian Film: Terror Sem Limites (2010), V/H/S (2012) e algumas cenas do alemão Melancholie der Engel (2009) e do francês Making Off (2012) passaram a fazer parte do meu repertório pessoal. Um conjunto de imagens capaz de corromper cérebros e almas.

V. Academia

Finalmente, depois de conhecer o mundo do gore e das carnificinas típicas do torture porn, encontrei o nicho ideal para mim: o horror psicológico, caracterizado fortemente pelas relações conturbadas entre familiares. Esse interesse me rendeu até mesmo uma extensa pesquisa — minha dissertação de mestrado, com foco na maternidade e no luto apresentados nas tramas de O Babadook (2014) e Hereditário (2018), bebendo também da fonte da Psicanálise. Modéstia à parte, um trabalho acadêmico que passou pela banca — formada por nomes conhecidos como Ana Maria Acker e Laura Cánepa — sem qualquer ressalva. Eu até gostaria de falar mais a respeito aqui, mas acredito que esgotei o assunto ao longo das 100 páginas já escritas.

Conclusão

Bom, depois de visitar tantas memórias, entendendo os impactos psicológicos de cada era, vejo que ter o horror como um de meus principais interesses não soa nada estranho. Pelo contrário: não gostar dele não combinaria com quem eu sou nem com o que já vivi.

O que me resta, talvez, seja transformar esse amor em ciência ou arte. Pesquisando mais a respeito, sob o ponto de vista da Comunicação ou, quem sabe, escrevendo um livro? Um roteiro? Um filme?

Só o tempo nos dirá. Espero que os fantasmas da inércia não me assombrem.

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