As armadilhas mentais em Joker (2019)

AVISO: Contém spoilers.

Clara Dantas
5 min readOct 6, 2019

“Joker” é um filme impossível de ignorar, mesmo para aqueles que não acompanham o mundo dos quadrinhos. Eu, que sempre gostei do vilão, saí eufórica do cinema, ansiosa para debater minhas percepções com outras pessoas.

Como a obra acabou de estrear e ainda não há muito conteúdo feito por quem já a assistiu, decidi elencar aqui os acontecimentos (será que aconteceram mesmo?) que mais chamaram a minha atenção. Então coloque um sorriso no rosto e vamos começar.

1. Risada

O próprio Joaquin Phoenix falou em entrevistas que começou a construir a sua versão do personagem a partir da risada — ela que é, sem dúvidas, um dos maiores trunfos do filme. Insana, descontrolada, quase dolorosa, desconfortável de ver.

Na cena do ônibus, bem no início, vemos que se trata de uma condição patológica, incompatível com os sentimentos de Arthur Fleck. Normalmente, as suas crises de riso surgem quando ele está nervoso.

No entanto, há uma dualidade que gostaria de ressaltar. Em muitos momentos, sua risada é consequência de seu quadro clínico; mas, em outros, é uma tentativa desesperada de se enquadrar em um determinado contexto.

Por exemplo, na cena em que seus colegas de trabalho estão fazendo graça com o anão, ele gargalha e, ao sair da vista deles, subitamente para, com a expressão séria, dando a entender que ele só fingiu que achou aquilo engraçado para poder se encaixar na situação.

Da mesma forma, como expectador, Arthur só ria nas “horas erradas”, quando o comediante ainda não havia terminado a piada — reforçando a ideia de que não possuía noção da realidade nem dos traquejos sociais. Perdido em seus próprios pensamentos.

2. Família

Também no começo, vemos que Arthur Fleck já ficou internado em um sanatório. Desde já, a narrativa estabelece que seu personagem principal está longe de ser alguém mentalmente equilibrado.

Vemos que ele mora com a mãe, Penny, e que ela tem uma profunda admiração por Thomas Wayne, seu antigo patrão. Ao ler uma das cartas escritas por ela, Arthur descobre que é fruto de um romance proibido entre o milionário e sua ex-empregada.

Ele confronta sua mãe, que explica que a relação dos dois nunca seria bem vista e que por isso Arthur não foi reconhecido como filho legítimo. Penny fala também que assinou alguns papéis sem sequer ler, pois confiava em Thomas (guarde bem essa informação!).

Fleck decide contestar o seu suposto pai. Em duas ocasiões diferentes, tanto Alfred (mordomo da família Wayne) como o próprio Thomas falam que Penny era doente, desequilibrada, que havia fantasiado tudo e adotado Arthur.

Observação: essa cena tem um corte muito interessante, considerando que em um segundo Arthur está apoiado na pia do mesmo banheiro onde Thomas estava e, de repente, ele é mostrado exatamente na mesma posição, mas em seu apartamento. Em seguida, ele esvazia sua geladeira e, completamente perturbado, entra nela. Fica a dúvida: será que a conversa foi real?

Depois disso, ele visita o Asilo Arkham e rouba o histórico de sua mãe — segundo o documento, uma paciente narcisista e negligente, que se envolvia com homens violentos e colocava o filho adotado em situações de perigo. Chocado com essa história cruel sobre seu passado, repleta de abusos e traumas, Arthur vai ao hospital onde Penny está e a sufoca com um travesseiro até a morte.

Se o enredo parasse aí, entenderíamos que Alfred e Thomas falaram a verdade e que tudo não passava de uma enorme farsa criada por Penny. Contudo, antes do desfecho do filme, vemos Arthur olhando uma foto antiga de sua mãe com uma dedicatória escrita e assinada por TW (Thomas Wayne). Conhecendo a índole do empresário, é provável que ele realmente tenha se envolvido com Penny e, para evitar o escândalo de sua gravidez, fez com que assinasse os tais papéis sobre sua falsa situação psicológica e a internou no Asilo Arkham.

Ou seja… O Coringa pode sim ser irmão do Batman. O filme não deixa isso claro — e seria um desperdício se o fizesse.

3. Devaneio

O filme também nos mostra a tendência que Arthur tem de se entregar à sua imaginação. Em uma sequência, acompanhamos o mesmo fantasiar sobre estar no programa de TV do seu ídolo, Murray Franklin. Em outra, descobrimos que sua vizinha, Sophie Dumond, o via apenas como o estranho que morava no mesmo corredor, enquanto ele idealizava ser seu namorado.

Levando isso em conta, também é concebível que tudo o que foi mostrado no filme seja um delírio do Coringa. Talvez ele nunca tenha saído do sanatório e todos os acontecimentos exibidos sejam, na verdade, uma alucinação — ou uma piada, como ele mesmo fala.

Eu, particularmente, acredito que as ações do Coringa foram reais sim, tendo em vista que, durante a cena icônica do assassinato dos pais de Bruce Wayne, ele estava desacordado. Sem falar que sabemos muito bem que é justamente por causa dessas mortes que o Batman surge.

A piada seria justamente essa: o fato de Bruce Wayne ter ficado órfão e, de certa forma, igual a Arthur. Algo que ganha ainda mais significado se levarmos em conta que eles são irmãos.

Diante de tantos mistérios, de duas coisas podemos ter certeza: Todd Phillips fez jus à essência do Coringa ao lançar perguntas e deixá-las sem resposta; assim como Joaquin Phoenix nos entregou uma performance monstruosa, assustadoramente realista. Que venha o Oscar!

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